O ofício do historiador a um passo da regulamentação?


José Vieira da Cruz*
             
Ao refletir sobre o ofício de sua profissão, o historiador Marc Bloch (1886-1944), um dos fundadores da chamada Escola dos Annales – corrente de pensamento de grande influência no fazer da escrita histórica –, ao escrever o livro Apologia da história ou o ofício do historiador, destacou que o exercício de buscar por “trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os artefatos ou as máquinas,] por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar” (p.54). Analisando essa passagem, percebe-se como ele define o objeto da história a partir do estudo das ações dos homens e das mulheres através dos tempos, através dos vestígios, dos indícios, dos registros materiais ou imateriais por eles produzidos e que de algum modo chegam ao alcance do historiador no exercício do seu ofício profissional.
Essa perspectiva não seria uma novidade. Outros historiadores, independente da corrente teórica, de alguma forma já haviam sinalizado a importância do tempo e das ações dos homens e das mulheres para o estudo da história. O que talvez não tenha sido tão enfatizado, pelo menos da forma como Bloch o fez, sejam a sensibilidade e a habilidade necessárias que esse ofício exige. Para ele, o exercício de capturar os significados da história não seria apenas um ato de erudição, embora ela, a erudição, também faça parte do repertório de habilidades imprescindíveis ao trabalho do historiador. Neste sentido, Marc Bloch enfatiza que “o bom historiador se parece como um ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça” (p. 54). Conclui-se, portanto, que o trabalho do historiador reveste-se de especificidades, habilidades, conhecimentos e saberes.
As discussões sobre o conjunto de habilidades necessárias ao trabalho do historiador, de certo modo, têm convergido para o reconhecimento da especificidade e da importância a respeito deste ofício profissional. Entretanto, ela ainda figura como uma profissão não regulamentada pela legislação brasileira. Os debates e os encaminhamentos a respeito de sua regulamentação, no Brasil, iniciados nas décadas de 1980 e 1990, mobilizaram os estudantes e profissionais da área, mas não tiveram solução de continuidade. O que resultou no arquivamento dos projetos de lei e em certo arrefecimento de ânimos.
Mas no decurso deste ano, um fato novo recolocou no horizonte de expectativas da sociedade e, particularmente da comunidade dos historiadores, a questão da regulamentação da profissão. Esse fato novo relaciona-se a aprovação pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado – CAS, na última quarta-feira, dia 10 de março de 2010, do Projeto de Lei 368/09, que trata da regulamentação da profissão de historiador. O texto de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), foi relatado pelo senador Cristovam Buarque (PDT-DF). Este ao apreciar a matéria declarou que "esse projeto não impede o desempenho da atividade de historiador por aqueles que o fazem por vontade própria ou vocação; apenas garante para os respectivos cargos públicos a exigência do diploma de historiador".
Ainda segundo a apreciação do relator o projeto define que a profissão de historiador poderá ser exercida pelos diplomados em curso superior de graduação, mestrado ou doutorado em história. As atividades desse profissional são, de acordo com o projeto, o magistério; a organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas históricos; o planejamento, a organização, a implantação e a direção de serviços de pesquisa histórica; o assessoramento para avaliação e seleção de documentos para fins de preservação; e a elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.
Aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado, agora, seguindo o trâmite regimental, o Projeto de Lei 368/09 segue para a Câmara dos Deputados Federais para discussão e, posterior, votação. Nessa nova etapa, as discussões e mobilizações a respeito do tema tendem a se intensificar. Estará o ofício de historiador próximo de ser regulamentado? Será o projeto de lei aprovado pelo Senado da Federal o mais próximo do ideal? A lei atenderá os interesses da sociedade e da comunidade dos historiadores?
Essas são perguntas que podem ser colocadas na agenda de discussões nos próximos meses. Evidentemente, em se tratando de um ano eleitoral seja pouco provável que a lei seja apreciada pela Câmara dos Deputados Federais esse ano, não obstante a relevância da matéria para campo da história e da memória de um país frequentemente acusado de esquecê-las. Possivelmente o texto da lei não seja o ideal, se é que exista em termos políticos o ideal, prefiro ficar com o possível. A lei como enfatizou o relator não impedirá aqueles que fazem atividade de historiador por vontade própria, mas criará normas para atividade profissional, indicando um marco importante para este ofício no Brasil. Os desdobramentos dessa história só o tempo nos revelará, afinal o historiador não tem o dom de prever o futuro, apenas se debruça sobre vestígios, indícios e registros do passado que de alguma forma chega até ele no exercício de seu ofício.

* Doutor em História. E a época deste artigo dirigia a Associação Nacional de História - Seção Sergipe.

FONTE: CRUZ, José Vieira da. "Ofício do historiador a um passo da regulamentação?". In: Jornal da Cidade. 17/03/2010. 

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