sábado, 16 de junho de 2012

Entre a história e a memória da ditadura civil-militar: drogas, polícia e (pre)conceito

DOUGLAS, Rafael. As botas que esmagam. Aracaju/SE, Abril de 2012












 (Imagem: DOUGLAS, Rafael. As botas que esmagam. Aracaju/SE, abril de 2012.) 




José Vieira da Cruz*

A crise por atenção provocada por uma conhecida “diva” do Rock ocupou a mídia, as redes sociais, parte da sociedade e, até mesmo, atenções do governo do Estado de Sergipe. Esse episódio de que tanto se falou nos últimos dias, apropriado por diversos ângulos e interesses, parece revelar mais que um simples ato de destempero ou de defesa da honra de alguém. Em minha interpretação, ele suscita (pre)conceitos acerca da ditadura civil-militar que persistem em nossa sociedade. Nota-se que, em rompantes como o ocorrido no referido show de Rock, esses (pre)conceitos afloram através de ressentimentos e contradições presentes no campo da memória, mas que a História ainda tem dificuldades em mediatizar.



Protagonizar crises por atenção não parece ser um fenômento isolado desse ou daquele artista, nesse ou naquele Estado. A necessidade de figurar sob as lentes da mídia parece essencial à própria existência de algumas celebridades. Tanto artistas nacionais como de projeção internacional, não obstante ao talento que possuem, sentem-se atraídos pela tentação de estarem envolvidos em polêmicas.

Ainda sobre o mencionado show, teve quem acreditasse que a referida “diva”, também conhecida por  outras polêmicas, encerraria tranquilamente sua carreira nas terras de Sergipe, sem procurar chamar, para si, os olhares da mídia nacional. Parecia o script dos sonhos para os crédulos, mas não foi, e ela, sem supresas, manteve-se no eixo das polêmicas.

Mas esse episódio foi além do trivial, pelo menos sob minha perspectiva de análise, externalizando questões de memória sobre a mais recente das ditaduras brasileiras. Sobre esse período da história nacional a “diva” declarou: “Sou do tempo da ditadura.” e “Não tenho medo de vocês.”, referindo a ação de militares que faziam policiamento no evento e coibiam o consumo de drogas. Diversos vídeos disponíveis na internet registram a artista defendendo o consumo de drogas, criticando a ação dos policiais e atingindo a dignidade dos profissionais que ali faziam a segurança pública do evento. Nem os crédulos contratantes do show foram polpados. Não sem razão eles partiram em solidariedade aos policiais. É salutar lembrar que esse episódio ocorreu justamente em um momento delicado no qual o governo enfrenta mais um desdobramento da crise estrutural da segurança pública no estado.

Em torno desse episódio, muito se disse sobre as qualidades da cantora em questão: personalidade artística que viveu entre um período político difícil e um momento de liberalização de costumes. Refiro-me à ditadura civil-militar e aos movimentos de contestação cultural das décadas de 1960 e 1970. Este é um ponto. Outro é que independente da história pessoal de cada um, ninguém tem o direito de denegrir a imagem pessoal e profissional de quem quer que seja, insisto ninguém, muito menos de defender de modo público o uso de drogas. Afinal, como já dito reiteradas vezes, ninguém está acima da lei, nem mesmo as “divas”.

Penso que a sociedade tem clareza quanto aos prejuízos sociais causados pelo consumo de drogas ilícitas. Ultimamente, dentre os debates sobre o uso ou não de drogas, tem-se o da  possível discriminalização e o papel do Estado sobre essa questão. Como é de se esperar, este é um ponto polêmico, divide posições, entranha inúmeras consequências e gera intensos debates.

Acredito que a “diva” em questão reacendeu o debate a respeito de um problema entre a memória e a história, ainda não resolvido em nosso país, qual seja: o de que o consumo de drogas por certos setores da classe média e elitizada da sociedade na década de 1960 e 1970, significava um repensar dos valores cotidianos da cultura daquele período. Valores inclusive incorporados por algumas pessoas, friso algumas e não todas, que passaram a associá-la também a luta pela liberalização política do país. Os tempos eram outros; as lutas eram outras; as drogas, apesar de drogas, eram outras; e os significados eram outros.

Diante do exposto, faz-se necessário frisar que a questão do uso de drogas nos dias de hoje e as consequências de sua liberalização ou não atravessa a sociedade. Neste sentido, apesar de respeitar a opinião dos que usam e/ou defendem sua liberalização – ainda que alguns de modo dissimulado, às vezes externalizando (pre)conceitos para aqueles que por lei devem coibir o consumo delas –, compreendo essa questão como um problema social, de saúde pública, de abrangência nacional e que deve ser discutida e enfrentada por políticas públicas que envolvam o tratamento a saúde dos dependentes; o trabalho de educação preventiva contra o consumo; e a assistência social e psicológica aos dependentes e a seus familiares. Mesmo desagradando a alguns, infelizmente, a formulação de uma política de Estado de combate às drogas não pode dispensar a ação policial. 

Neste sentido, desqualificar a ação da polícia no tocante ao combate do consumo de drogas atualmente, associando-a a triste memória da tortura e da truculência exercida pela polícia e pelo exército durante a ditadura civil-militar revela feridas não cicatrizadas acerca de um parte da memória política do país. Será que apenas os militares são os responsáveis pelo abuso cometido contra os direitos humanos ocorrido no mencionado período (1964 a 1985)? Será que nos quartéis, não obstante as viseiras do militarismo, alguns praças e oficiais não procuraram atenuar os excessos da Lei de Segurança Nacional e suas práticas de tortura? Vejam, se até Igreja Católica, fincada em uma tradição de unidade, teve campos e posições diferentes sobre a ditadura civil-militar, por que o (pre)conceito reacendido no referido episódio para com os militares?

Acredito que para esclarecer e libertar a sociedade brasileira de fantasmas e estigmas arraigados contra um ou outro de seus segmentos sociais, é necessário conhecer melhor este passado. Para tanto, é preciso abrir, de forma universal, livre e sem restrições, o acesso aos arquivos da PM2, do 28º BC, da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, do Poder Judiciário, entre outros, aos cidadãos. É preciso saber quem fez o quê! 

* Doutor em História, prof. da SEED, da SEMED e da UNIT.

Fonte: Jornal da Cidade. Aracaju, 01/02/2012. Disponível em: http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=3078&t=entre-a-historia-e-a-memoria-da-ditadura-civil-militar-drogas,-policia-e-(pre)conceito

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