sexta-feira, 15 de junho de 2012

Repressão, estudantes vigiados e os arquivos da ditadura em Sergipe



Douglas, Rafael. Aracaju/SE, abril de 2012
                                                                                (Imagem: DOUGLAS, Rafael. As grades. Aracaju/Se, abril de 2012)




José Vieira da Cruz*
A descoberta de arquivos relacionados ao período da ditadura civil-militar, ocorrida entre 1964 e 1985, tem gerado na sociedade o desejo de conhecer de modo mais aprofundado esse passado e seus significados. Por isso, o interesse para que eles sejam abertos tem ocupado a agenda de debates e mobilizações da sociedade, como dos sindicatos, entidades estudantis, OAB, igrejas, pesquisadores, juventudes, partidos políticos de diferentes posições ideológicas, entre vários outros segmentos. Preocupar-se com essa discussão requer que essa demanda, abertura dos arquivos, seja pautada pela universalidade do acesso, sem restrições, dos acervos documentais a todos os cidadãos. Perspectiva política e acadêmica que permitirá a ampliação tanto do horizonte de conhecimento como da teia de significados que envolve esse campo de interesse. Ao menos, é isso que se espera com a aplicação da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regula o acesso a informações, e da Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade.


Em termos acadêmicos, além das contribuições de cunho jornalístico ou de memorialistas, Sergipe é um dos poucos estados do país a possuir um estudo de fôlego construído a partir do diálogo entre a ciência política e os procedimentos teóricos e metodológicos inerente aos historiadores profissionais, refiro-me ao livro de Ibarê Dantas, A tutela militar em Sergipe, publicado em 1997, obra cujo valor é reconhecido por especialistas de várias partes do país.
Além da mencionada obra de referência, no tocante aos estudos relativos à repressão política aplicada aos estudantes em Sergipe durante o período da ditadura civil-militar, os trabalhos Adriana Melo Carvalho e de Gislaine Santos Carvalho dão importantes contribuições a esse campo de estudo. O primeiro, sob orientação do professor Francisco José Alves, reuni os documentos relativos à correspondência dos órgãos de segurança e informação do antigo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFS. O segundo, sob nossa orientação, esmiuçou a história da Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI) da UFS, a partir do exame de documentos e da realização de uma primeira série de entrevistas.
O diálogo com essa produção, a busca de outros documentos e o registro de relatos de experiências – através do uso metodológico da história oral – têm alargado a importância dessas fontes e de seus significados. Essa reflexão a respeito da vigilância produzida pelos órgãos de segurança e informação sobre o ensino superior e, em especial, sobre os estudantes universitários, suas instituições representativas e seus movimentos e experiências políticas e/ou culturais vêm possibilitando conhecer melhor esse passado. Este debate envolve, portanto, uma discussão sobre a importância do acesso às fontes de pesquisa e dos significados que elas podem produzir.
Em relação às fontes de pesquisa acerca do movimento estudantil durante a ditadura civil-militar, assim como de outras fontes relacionadas ao período em estudo, chegaram a dizer que elas não existiam, foram destruídas ou não poderiam ser acessadas. Em outras palavras, é como se tivesse acontecido com essas fontes o mesmo fim que outrora fora supostamente atribuído às fontes sobre a escravidão: teriam sido destruídas, tornando-se inviável os estudos a respeito. Respeitados os devidos contextos e as respectivas intenções que envolvem ambos acontecimentos, algo próximo ocorreu com a documentação relacionada aos órgãos de segurança e informação: parte dela foi sendo filtrada pelas autoridades responsáveis, à medida que o processo de redemocratização avançava no país, e outra parte foi destruída como forma de protesto pelos estudantes.
O episódio em que os estudantes da Universidade Federal do Ceará (UFC), ao descobrirem os arquivos dessa natureza, na década de 1980, promoveram uma operação para a sua destruição, é um exemplo dessa situação.  Essa invasão a Assessoria de Segurança e Informação (ASI), na UFC, não foi um caso isolado, mais um orientação da UNE engajada contra o Sistema Nacional de Informações (SNI). Neste contexto, Sergipe não foi uma exceção a esse posicionamento. Lideranças do movimento estudantil universitário e funcionários que atuaram junto a ASI/UFS, relatam episódio parecido: quando os estudantes, como forma de protesto, destruíram parte desses arquivos. Não obstante a importância simbólica desses protestos e mesmo a intenção de apagar os traumas que esses documentos poderiam suscitar, os registros destes órgãos de segurança e informação configuram-se em importantes fontes de estudo sobre os estudantes, a universidade e a sociedade brasileira no período. 
Observa-se, assim, que ocorreu um duplo desmonte desses arquivos junto às instituições de ensino superior: um oficial, ocorrido com o esvaziamento dos arquivos pelas autoridades, e outro social, decorrente dos protestos estudantis contra as reminiscências da ditadura civil-militar. Esses desmontes, por algum tempo, alimentaram a impressão de que só seria possível trabalhar o assunto através de entrevistas, notas esparsas nos jornais ou acessando arquivos do SNI ou sobre a ditadura localizados no Rio de Janeiro, São Paulo ou Brasília. Mas, apesar de tudo isso, nos arquivos do Programa de Documentação e Pesquisa Histórica e no Arquivo Central da UFS, alguns registros sobreviveram e têm sido trabalhados pelos pesquisadores. Dentre esses registros, têm-se: correspondências expedidas e recebidas, atas de conselhos, peças teatrais censuradas, inquérito, relatórios, entre outros. Limitando-se ao exame da correspondência expedida e recebida, percebe-se que, a partir de 1969 a Divisão de Segurança e Informação (DSI), um dos braços de apoio do SNI, elegeu como um dos focos de suas preocupações a atuação política e/ou cultural dos estudantes universitários. Preocupação que levaria a montar em 1971, junto à UFS, a Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), mais um tentáculo da comunidade de informações e segurança nacional. Os primeiros registros dessas correspondências, mantidas entre a reitoria da UFS e o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, apontam alguns estudantes como causadores da “intranqüilidade pública”. O exame desta documentação chama atenção, ainda, pelo volume de referências feitas aos estudantes e pela persistente recomendação quanto ao controle e à punição de estudantes envolvidos.
Dentro de uma lógica estrategista e disciplinar, a chegada ao poder dos militares, em 1964, através do golpe civil-militar, atendia aos interesses de setores da sociedade civil preocupados com os rumos que as reformas de base estavam tomando, particularmente, em regiões onde as tensões sociais ligadas à terra e aos movimentos de educação e cultura popular se avolumavam, como era o caso de Sergipe.  Neste contexto, o golpe atendia aos interesses de setores da sociedade civil que estavam temerosos com o rumo que os discursos e algumas ações reformistas estavam seguindo. Mas do ponto de vista político, para além dos discursos nacionalista, reformistas e anticomunistas que apontavam para um movimento “revolucionário” de aprofundamento das transformações sociais, o golpe civil-militar ocorreu sem grandes resistências, mesmo em estados onde os governadores ensejavam um discurso de apoio às reformas de base, como foi o caso de Sergipe.
Em parte, isso pode ser explicado pela opção política de João Goulart, então presidente do país, em evitar o conflito armado e mesmo, enquanto ruralista, em não levar à frente uma proposta efetiva de reforma agrária. Em parte, também, devido às orientações do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, desde a década de 1950, esboçou como estratégia para o país o caminho da legalidade e da democracia, o que lhe valeu pesadas críticas de grupos dissidentes. Para o PCB, não obstante o sucesso da Revolução Cubana que empolgava o imaginário social de estudantes, sindicalistas, militantes políticos, trabalhadores urbanos e rurais, não estava cicatrizada nas memórias do alto comando do partido, o duro aprendizado político do insucesso da Intentona Comunista em 1935. Processo que levou o país à ditadura do Estado Novo, e, com esta, prisões, torturas e assassinatos de importantes quadros do partido e de outras lideranças políticas. Período também a ser estudado e discutido pela “Comissão Nacional da Verdade” e as suas congêneres nos estados.
Os militares, por sua vez, ao tomarem o poder, buscaram impor ordem e disciplina à sociedade brasileira. Para isso, valeram-se de sua formação e das estratégias que conheciam para combater “os inimigos da ordem pública e da segurança nacional”. Mas quem seriam esses inimigos? Quem mereceria a atenção dos órgãos de segurança e informação nacional? Era necessário identificá-los, conhecê-los e agir preventivamente, antecipando os seus passos. Foi dentro dessa lógica que os militares passaram a fortalecer o Serviço Nacional de Informação (SNI), ligando-o diretamente à presidência. Procedimento também aplicado à Divisão Segurança e Informação (DSI), que passou a atuar diretamente junto aos Ministérios. E, por fim, as Assessorias Especiais de Segurança e Informação (AESI), depois denominadas de (ASI), que passaram a funcionar junto a universidades e outras instituições públicas. Compreender como atuaram os órgãos de segurança e informação no sentido de identificar, vigiar e controlar os estudantes classificados como agentes causadores da “intranquilidade pública” expressa um dos norte da repressão política imposta ao ensino superior no país, em especial, aos estudantes universitários.
A respeito dessa discussão, vale mencionar a conhecida crítica formulada por Roberto Schwarz de que a política cultural brasileira durante a ditadura estabeleceu um claro divisor de águas entre atuação dos estudantes, tendo em vista que o governo buscou, por um lado, romper as relações dos estudantes com os movimentos populares de cultura e de educação, com os sindicatos, com as ligas camponesas e com os partidos nacionalistas e os de esquerda e, por outro lado, controlar a produção cultural do período.
Neste contexto, a atuação dos mencionados órgãos de segurança – SNI, DSI, AESI, ASI – apontavam os estudantes classificados como “subversivos” e causadores da “intranquilidade social” como preocupação central da política nacional de segurança. Entretanto, a compreensão histórica acerca dos desdobramentos dessa política não pode ser embasada apenas por seus postulados, mas sim buscada a partir da discussão de cada acontecimento produzido, como preconizado por Marc Bloch, em Apologia da história, ou, o ofício do historiador. Neste sentido, é importante analisar a posição do primeiro reitor da UFS, João Cardoso Nascimento Júnior, em relação às “ordens” para expulsão dos estudantes listados pelos órgãos de segurança, discussão também trabalhada por Ibarê Dantas e por Jussara Silveira. O fato da reitoria da UFS ter encaminhado os processos no sentido de repreendê-los disciplinarmente, cassando seus direitos políticos sem expulsá-los, é apreciado como a alternativa política viabilizada em meio às tensões que a questão suscitava na época.
Portanto, mesmo pressionado pelos militares da 6ª Região Militar, representada em Sergipe pelo 28º BC, a administração da UFS resolveu não expulsar os estudantes que apareciam na lista, mas, através da Portaria nº 29, referendada pelo Conselho Universitário da UFS,  suspender do exercício de suas funções as lideranças estudantis e caçar seus direitos políticos. Essa deliberação, embora dura, assegurou a esses estudantes que concluíssem os seus cursos. A esse respeito, Ibarê Dantas, consultando a documentação, identificou entre estes estudantes:  Antonio Jacinto Filho, Benedito Figueiredo, Carlos Cleber Nabuco Teixeira, Elias Hora Espinheiro, Jackson Barreto Lima, Jackson de Sá Figueiredo, João Augusto Gama da Silva, João de Deus Góis, Jonas da Silva Amaral Neto, José Anderson Nascimento, José Sérgio Monte Alegre, Josefa Lourindo Novais, Mario Jorge Menezes Vieira, Moacir Soares da Mota, Otoniel da Silva Vieira Neto,  Paulo Parrocho Nou e Wellington Dantas Mangueira Marques, no curso de Direito;  Antonio Vieira da Costa e Dilson Menezes Barreto, no curso de Economia; Janete Correia de Melo e Elvidina Macedo de Carvalho, no curso de Letras; Ilma Menezes Fontes, José Alves Nascimento, José Rolemberg Filho e Maria Janete Sá Figueiredo, no curso de Medicina;  Francisco Carlos Nascimento Varela e José Jacob Dias Polito, no curso de Química; Elze Maria dos Santos, Hendricks Johannes Sprabel e João Bosco Rolemberg Côrtes, no curso de Serviço Social.
À primeira relação, em julho de 1970, uma segunda coloca mais cinco estudantes no rol dos que deveriam ser expulsos por força do Decreto-lei nº 477/1969: José Ibarê Costa Dantas, no curso de História; Paulo Afonso de Almeida e Sílvio Santana Filho, no curso de Direito; Júlio César Régis Dantas, no curso Serviço Social; e Zenaide Rosa Sobral, no curso de Geografia.  De igual forma, a esses estudantes a reitoria também aplicou a mesma “sanção disciplinar”, evitando assim a expulsão.
Avaliando a documentação e a bibliografia a respeito, observa-se que as constantes cobranças dos órgãos de segurança e informação, em parte, deviam-se em razão da demora nos encaminhamentos solicitados e mesmo por conta das resoluções que estes encaminhamentos recebiam em uma ou outra instituição de ensino superior. Dessa forma, a demora, ou o protelamento, em atender às demandas da DSI, pode justificar a ampliação da estruturação da comunidade de segurança e informação, através da criação das assessorias especiais de informação.
Segundo estudos, alguns setores das universidades brasileiras, em alguns momentos colaboraram com a ideologia de Segurança Nacional, colocando-se contra professores, funcionários e estudantes que não estivessem ao lodo da nova ordem estabelecida no país. É nesta perspectiva que o exame de documentos localizados junto aos arquivos possibilita compreender de modo balizado não apenas esse, como outros campos de discussões. Ele permite também (re)interpretar e (re)significar fatos relativos a ditadura civil-militar ou mesmo relacionados a outros períodos, como a ditadura do Estado Novo, não apenas como algo pensado de cima para baixo, mas sim articulado a partir das experiências e inter-relações de cada época, de cada sociedade, de cada estado, de cada instituição e dos diferentes grupos de interesses presentes e/ou representados.
Ao ressaltar a riqueza desta documentação e a importância da bibliografia trabalhada, nossa reflexão mostra que este é ainda um tema em aberto e chama atenção para fato de que sua interpretação ainda não foi devidamente aprofundada. Em particular, levanta a necessidade de se buscar, junto aos arquivos locais e nacionais outros registros para ampliar o horizonte dessa discussão, ao tempo que reforça o debate acadêmico e político a respeito da liberação dos arquivos atinentes à ditadura civil-militar no Brasil e na América Latina.

* Doutor em História, prof. da SEED, da SEMED e da UNIT.

Fonte: Jornal da Cidade, Aracaju/SE, 10 e 11 de abril de 2012. Disponível em: http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=3413&t=jose-vieira-da-cruz-aborda-sobre-






 












2 comentários:

  1. Adorei o texto! Como sempre, instigante, leitura leve e atraente! Parabéns pela iniciativa. Acredito que para nós professores, as ferramentas digitais são imprescindíveis! Minha admiração e meu abraço!
    Emanuele Tourinho

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    1. Dileta Emanuele Tourinho,

      Sinto-me lisonjeado por tê-la como apreciadora deste texto, e mais ainda pela aprovação desta minha iniciativa de montar um blog.
      Quero retribuir o abraço com desejo de sucesso e de muita luz para ti e para todos de sua família!

      Vieira

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