(Imagem: DOUGLAS, Rafael. As grades. Aracaju/Se, abril de 2012)
José Vieira da Cruz*
A
descoberta de arquivos relacionados ao período da ditadura civil-militar,
ocorrida entre 1964 e 1985, tem gerado na sociedade o desejo de conhecer de
modo mais aprofundado esse passado e seus significados. Por isso, o interesse
para que eles sejam abertos tem ocupado a agenda de debates e mobilizações da
sociedade, como dos sindicatos, entidades estudantis, OAB, igrejas,
pesquisadores, juventudes, partidos políticos de diferentes posições
ideológicas, entre vários outros segmentos. Preocupar-se com essa discussão
requer que essa demanda, abertura dos arquivos, seja pautada pela
universalidade do acesso, sem restrições, dos acervos documentais a todos os
cidadãos. Perspectiva política e acadêmica que permitirá a ampliação tanto do horizonte
de conhecimento como da teia de significados que envolve esse campo de
interesse. Ao menos, é isso que se espera com a aplicação da Lei nº 12.527, de
18 de novembro de 2011, que regula o acesso a informações, e da Lei
12.528, de 18 de novembro de 2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade.
Em
termos acadêmicos, além das contribuições de cunho jornalístico ou de memorialistas,
Sergipe é um dos poucos estados do país a possuir um estudo de fôlego
construído a partir do diálogo entre a ciência política e os procedimentos
teóricos e metodológicos inerente aos historiadores profissionais, refiro-me ao
livro de Ibarê Dantas, A tutela militar
em Sergipe, publicado em 1997, obra cujo valor é reconhecido por
especialistas de várias partes do país.
Além
da mencionada obra de referência, no tocante aos estudos relativos à repressão
política aplicada aos estudantes em Sergipe durante o período da ditadura
civil-militar, os trabalhos Adriana Melo Carvalho e de Gislaine Santos Carvalho
dão importantes contribuições a esse campo de estudo. O primeiro, sob orientação
do professor Francisco José Alves, reuni os documentos relativos à
correspondência dos órgãos de segurança e informação do antigo Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da UFS. O segundo, sob nossa orientação, esmiuçou
a história da Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI) da UFS, a
partir do exame de documentos e da realização de uma primeira série de entrevistas.
O
diálogo com essa produção, a busca de outros documentos e o registro de relatos
de experiências – através do uso metodológico da história oral – têm alargado a
importância dessas fontes e de seus significados. Essa reflexão a respeito da
vigilância produzida pelos órgãos de segurança e informação sobre o ensino
superior e, em especial, sobre os estudantes universitários, suas instituições
representativas e seus movimentos e experiências políticas e/ou culturais vêm
possibilitando conhecer melhor esse passado. Este debate envolve, portanto, uma
discussão sobre a importância do acesso às fontes de pesquisa e dos significados
que elas podem produzir.
Em relação às fontes de pesquisa acerca do movimento
estudantil durante a ditadura civil-militar, assim como de outras fontes relacionadas
ao período em estudo, chegaram a dizer que elas não existiam, foram destruídas
ou não poderiam ser acessadas. Em outras palavras, é como se tivesse acontecido
com essas fontes o mesmo fim que outrora fora supostamente atribuído às fontes
sobre a escravidão: teriam sido destruídas, tornando-se inviável os estudos a
respeito. Respeitados os devidos contextos e as respectivas intenções que
envolvem ambos acontecimentos, algo próximo ocorreu com a documentação
relacionada aos órgãos de segurança e informação: parte dela foi sendo filtrada
pelas autoridades responsáveis, à medida que o processo de redemocratização
avançava no país, e outra parte foi destruída como forma de protesto pelos
estudantes.
O episódio em que os estudantes da Universidade
Federal do Ceará (UFC), ao descobrirem os arquivos dessa natureza, na década de
1980, promoveram uma operação para a sua destruição, é um exemplo dessa
situação. Essa invasão a Assessoria de Segurança
e Informação (ASI), na UFC, não foi um caso isolado, mais um orientação da UNE
engajada contra o Sistema Nacional de Informações (SNI). Neste contexto, Sergipe
não foi uma exceção a esse posicionamento. Lideranças do movimento estudantil
universitário e funcionários que atuaram junto a ASI/UFS, relatam episódio
parecido: quando os estudantes, como forma de protesto, destruíram parte desses
arquivos. Não obstante a importância simbólica desses protestos e mesmo a
intenção de apagar os traumas que esses documentos poderiam suscitar, os
registros destes órgãos de segurança e informação configuram-se em importantes
fontes de estudo sobre os estudantes, a universidade e a sociedade brasileira no
período.
Observa-se,
assim, que ocorreu um duplo desmonte desses arquivos junto às instituições de
ensino superior: um oficial, ocorrido com o esvaziamento dos arquivos pelas
autoridades, e outro social, decorrente dos protestos estudantis contra as
reminiscências da ditadura civil-militar. Esses desmontes, por algum tempo,
alimentaram a impressão de que só seria possível trabalhar o assunto através de
entrevistas, notas esparsas nos jornais ou acessando arquivos do SNI ou sobre a
ditadura localizados no Rio de Janeiro, São Paulo ou Brasília. Mas, apesar de
tudo isso, nos arquivos do Programa de Documentação e Pesquisa Histórica e no
Arquivo Central da UFS, alguns registros sobreviveram e têm sido trabalhados
pelos pesquisadores. Dentre esses registros, têm-se: correspondências expedidas
e recebidas, atas de conselhos, peças teatrais censuradas, inquérito,
relatórios, entre outros. Limitando-se ao exame da correspondência expedida e
recebida, percebe-se que, a partir de
Dentro de uma
lógica estrategista e disciplinar, a chegada ao poder dos militares, em 1964, através
do golpe civil-militar, atendia aos interesses de setores da sociedade civil
preocupados com os rumos que as reformas de base estavam tomando, particularmente,
em regiões onde as tensões sociais ligadas à terra e aos movimentos de educação
e cultura popular se avolumavam, como era o caso de Sergipe. Neste contexto, o golpe atendia aos
interesses de setores da sociedade civil que estavam temerosos com o rumo que
os discursos e algumas ações reformistas estavam seguindo. Mas do ponto de
vista político, para além dos discursos nacionalista, reformistas e
anticomunistas que apontavam para um movimento “revolucionário” de
aprofundamento das transformações sociais, o golpe civil-militar ocorreu sem
grandes resistências, mesmo em estados onde os governadores ensejavam um
discurso de apoio às reformas de base, como foi o caso de Sergipe.
Em parte, isso
pode ser explicado pela opção política de João Goulart, então presidente do
país, em evitar o conflito armado e mesmo, enquanto ruralista, em não levar à
frente uma proposta efetiva de reforma agrária. Em parte, também, devido às
orientações do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, desde
a década de 1950, esboçou como estratégia para o país o caminho da legalidade e
da democracia, o que lhe valeu pesadas críticas de grupos dissidentes. Para o
PCB, não obstante o sucesso da Revolução Cubana que empolgava o imaginário
social de estudantes, sindicalistas, militantes políticos, trabalhadores
urbanos e rurais, não estava cicatrizada nas memórias do alto comando do
partido, o duro aprendizado político do insucesso da Intentona Comunista em
1935. Processo que levou o país à ditadura do Estado Novo, e, com esta,
prisões, torturas e assassinatos de importantes quadros do partido e de outras
lideranças políticas. Período também a ser estudado e discutido pela “Comissão
Nacional da Verdade” e as suas congêneres nos estados.
Os militares,
por sua vez, ao tomarem o poder, buscaram impor ordem e disciplina à sociedade
brasileira. Para isso, valeram-se de sua formação e das estratégias que
conheciam para combater “os inimigos da ordem pública e da segurança nacional”.
Mas quem seriam esses inimigos? Quem mereceria a atenção dos órgãos de
segurança e informação nacional? Era necessário identificá-los, conhecê-los e
agir preventivamente, antecipando os seus passos. Foi dentro dessa lógica que
os militares passaram a fortalecer o Serviço Nacional de Informação (SNI),
ligando-o diretamente à presidência. Procedimento também aplicado à Divisão
Segurança e Informação (DSI), que passou a atuar diretamente junto aos
Ministérios. E, por fim, as Assessorias Especiais de Segurança e Informação (AESI),
depois denominadas de (ASI), que passaram a funcionar junto a universidades e
outras instituições públicas. Compreender como atuaram os órgãos de segurança e
informação no sentido de identificar, vigiar e controlar os estudantes
classificados como agentes causadores da “intranquilidade pública” expressa um
dos norte da repressão política imposta ao ensino superior no país, em especial,
aos estudantes universitários.
A respeito dessa
discussão, vale mencionar a conhecida crítica formulada por Roberto Schwarz de
que a política cultural brasileira durante a ditadura estabeleceu um claro
divisor de águas entre atuação dos estudantes, tendo em vista que o governo
buscou, por um lado, romper as relações dos estudantes com os movimentos
populares de cultura e de educação, com os sindicatos, com as ligas camponesas
e com os partidos nacionalistas e os de esquerda e, por outro lado, controlar a
produção cultural do período.
Neste contexto,
a atuação dos mencionados órgãos de segurança – SNI, DSI, AESI, ASI – apontavam
os estudantes classificados como “subversivos” e causadores da “intranquilidade
social” como preocupação central da política nacional de segurança. Entretanto,
a compreensão histórica acerca dos desdobramentos dessa política não pode ser
embasada apenas por seus postulados, mas sim buscada a partir da discussão de
cada acontecimento produzido, como preconizado por Marc Bloch, em Apologia da história, ou, o ofício do
historiador. Neste sentido, é importante analisar a posição do primeiro
reitor da UFS, João Cardoso Nascimento Júnior, em relação às “ordens” para
expulsão dos estudantes listados pelos órgãos de segurança, discussão também
trabalhada por Ibarê Dantas e por Jussara Silveira. O fato da reitoria da UFS
ter encaminhado os processos no sentido de repreendê-los disciplinarmente,
cassando seus direitos políticos sem expulsá-los, é apreciado como a
alternativa política viabilizada em meio às tensões que a questão suscitava na
época.
Portanto, mesmo
pressionado pelos militares da 6ª Região Militar, representada em Sergipe pelo
28º BC, a administração da UFS resolveu não expulsar os estudantes que
apareciam na lista, mas, através da Portaria nº 29, referendada pelo Conselho
Universitário da UFS, suspender do
exercício de suas funções as lideranças estudantis e caçar seus direitos
políticos. Essa deliberação, embora dura, assegurou a esses estudantes que
concluíssem os seus cursos. A esse respeito, Ibarê Dantas, consultando a
documentação, identificou entre estes estudantes: Antonio Jacinto Filho, Benedito Figueiredo,
Carlos Cleber Nabuco Teixeira, Elias Hora Espinheiro, Jackson Barreto Lima,
Jackson de Sá Figueiredo, João Augusto Gama da Silva, João de Deus Góis, Jonas
da Silva Amaral Neto, José Anderson Nascimento, José Sérgio Monte Alegre,
Josefa Lourindo Novais, Mario Jorge Menezes Vieira, Moacir Soares da Mota,
Otoniel da Silva Vieira Neto, Paulo
Parrocho Nou e Wellington Dantas Mangueira Marques, no curso de Direito; Antonio Vieira da Costa e Dilson Menezes
Barreto, no curso de Economia; Janete Correia de Melo e Elvidina Macedo de
Carvalho, no curso de Letras; Ilma Menezes Fontes, José Alves Nascimento, José
Rolemberg Filho e Maria Janete Sá Figueiredo, no curso de Medicina; Francisco Carlos Nascimento Varela e José
Jacob Dias Polito, no curso de Química; Elze Maria dos Santos, Hendricks
Johannes Sprabel e João Bosco Rolemberg Côrtes, no curso de Serviço Social.
À primeira
relação, em julho de 1970, uma segunda coloca mais cinco estudantes no rol dos que deveriam ser expulsos por força
do Decreto-lei nº 477/1969: José Ibarê Costa Dantas, no curso de História;
Paulo Afonso de Almeida e Sílvio Santana Filho, no curso de Direito; Júlio
César Régis Dantas, no curso Serviço Social; e Zenaide Rosa Sobral, no curso de
Geografia. De igual forma, a esses
estudantes a reitoria também aplicou a mesma “sanção disciplinar”, evitando
assim a expulsão.
Avaliando a
documentação e a bibliografia a respeito, observa-se que as constantes
cobranças dos órgãos de segurança e informação, em parte, deviam-se em razão da
demora nos encaminhamentos solicitados e mesmo por conta das resoluções que
estes encaminhamentos recebiam em uma ou outra instituição de ensino superior. Dessa
forma, a demora, ou o protelamento, em atender às demandas da DSI, pode
justificar a ampliação da estruturação da comunidade de segurança e informação,
através da criação das assessorias especiais de informação.
Segundo estudos,
alguns setores das universidades brasileiras, em alguns momentos colaboraram
com a ideologia de Segurança Nacional, colocando-se contra professores,
funcionários e estudantes que não estivessem ao lodo da nova ordem estabelecida
no país. É nesta perspectiva que o exame de documentos localizados junto aos
arquivos possibilita compreender de modo balizado não apenas esse, como outros
campos de discussões. Ele permite também (re)interpretar e (re)significar fatos
relativos a ditadura civil-militar ou mesmo relacionados a outros períodos, como
a ditadura do Estado Novo, não apenas como algo pensado de cima para baixo, mas
sim articulado a partir das experiências e inter-relações de cada época, de
cada sociedade, de cada estado, de cada instituição e dos diferentes grupos de
interesses presentes e/ou representados.
Ao ressaltar a
riqueza desta documentação e a importância da bibliografia trabalhada, nossa
reflexão mostra que este é ainda um tema em aberto e chama atenção para fato de
que sua interpretação ainda não foi devidamente aprofundada. Em particular,
levanta a necessidade de se buscar, junto aos arquivos locais e nacionais
outros registros para ampliar o horizonte dessa discussão, ao tempo que reforça
o debate acadêmico e político a respeito da liberação dos arquivos atinentes à
ditadura civil-militar no Brasil e na América Latina.
* Doutor em História, prof. da SEED, da SEMED e da UNIT.
Fonte: Jornal da Cidade, Aracaju/SE, 10 e 11 de abril de 2012. Disponível em: http://www.primeiramao.blog.br/post.aspx?id=3413&t=jose-vieira-da-cruz-aborda-sobre-
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sexta-feira, 15 de junho de 2012
Repressão, estudantes vigiados e os arquivos da ditadura em Sergipe
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Adorei o texto! Como sempre, instigante, leitura leve e atraente! Parabéns pela iniciativa. Acredito que para nós professores, as ferramentas digitais são imprescindíveis! Minha admiração e meu abraço!
ResponderExcluirEmanuele Tourinho
Dileta Emanuele Tourinho,
ExcluirSinto-me lisonjeado por tê-la como apreciadora deste texto, e mais ainda pela aprovação desta minha iniciativa de montar um blog.
Quero retribuir o abraço com desejo de sucesso e de muita luz para ti e para todos de sua família!
Vieira