(Imagem: Ibarê Dantas, IGHSE)
José Vieira da Cruz[1]
A
posição da sociedade diante do passado ajuda a compreender como ele é interpretado
e apropriado em cada época e lugar. Os historiadores, seja por dever de ofício,
seja pela própria especificidade do seu campo de conhecimento, ao buscarem interpretar
o passado percebem-no como “um componente inevitável das
instituições, valores e outros padrões da sociedade humana”[2].
Desta forma, os historiadores de ofício, ou seja, aqueles com formação
acadêmica e exercício profissional voltados para essa área de conhecimento,
além de descreverem os acontecimentos do passado, procuram analisar os seus sentidos.
Dentro dessa perspectiva, a
de um historiador de oficio preocupado em compreender os sentidos do passado, é
que podemos localizar a obra de Ibarê Dantas. Sergipano de Riachão do Dantas,
licenciado em História pela UFS, mestre em Ciência Política pela UNICAMP, autor de diversas livros e artigos. Não sem
razão, a organização do “XIV Encontro Sergipano de História” escolheu a sua produção
acadêmica como tema de discussão.
Esse
encontro, intitulado “Ibarê Dantas: História, memória e historiografia”,
ocorrido entre os dias 28 e 31 de maio de 2012, e a homenagem que ele efetiva, coaduna
algumas qualidades inerentes ao ofício do historiador, no caso, o ato de
lembrar e, por conseguinte, o de reconhecer. Partindo dessa premissa, tanto profissionais
da área como o referido pesquisador proferiram ponderações acerca de suas
contribuições, ou seja, da vida e da obra de Dantas.
A
temática desse recente encontro e os debates dele provenientes, não ficaram
circunscritos apenas a sua realização, prova disso pode ser percebida ao
folhearmos as páginas dominicais do “Jornal da Cidade”, no espaço destinado a
opiniões, cujos artigos centrados nos resultados do referido evento acadêmico
vêm sendo publicados. O primeiro, de autoria de Fernando Sá, publicada 04/06/2012,
versou sobre as contribuições de Dantas para historiografia sergipana. O
segundo, de Lindvaldo Sousa, publicada
10/06/2012, tratou do frequente uso das obras de Dantas como referência
bibliográfica pelos estudantes de História em monografias de conclusão de
curso. Em ambos os artigos, além das devidas deferências, é perceptível a
necessidade da fomentação de uma avaliação crítica do trabalho elaborado por
esse historiador. Tal avaliação faz-se necessária seja em razão da evocação de
temas controversos presentes nessa produção acadêmica, como o debate sobre a
natureza conceitual da inflexão política ocorrida em 1964, se golpe ou
contrarrevolução; seja para analisar como as contribuições desse historiador
foram e são apropriadas pelos estudantes de história e pelos demais
pesquisadores que a consultam.
Estimulado
por essas discussões, resolvi externar, ainda que de modo breve, aquilo que
denomino de plano de estudo sobre as contribuições de Dantas como um
historiador de ofício, e que foi objeto de minha explanação em uma das mesas do
mencionado encontro. Frente a essa questão, falar das contribuições de um
historiador de ofício, nascido e formado em Sergipe, em um evento acadêmico, em
regra, enfrenta o problema de situar-me no lugar comum das narrativas dos dados
biográficos, das experiências vividas junto ao profissional homenageado e das
deferências quanto à importância de sua produção bibliográfica. Por um lado, fugir a esse roteiro é uma
tarefa difícil, por outro, a elaboração de um estudo sobre os significados da
obra acadêmica de Dantas para o campo da história exigi tempo e, sobretudo, uma
discussão sobre a hermenêutica em que ela foi pensada e produzida, como sugeriu
Jörn Rüsen, teórico da história, ao estudar as diferentes dimensões que
caracterizam o campo de atuação dos historiadores[3].
Dentro
desta perspectiva, da teoria da história de Rüsen, ao menos a título de uma
proposta de estudo a ser trabalhada, uma análise da obra de Ibarê Dantas, em
particular, no campo da história em Sergipe, pode ser pensada a partir de três
dimensões constitutivas da prática profissional dos historiadores: a posicionalidade,
ou seja, as posições acadêmicas e políticas assumidas pelo autor; a pesquisa de
fontes, no caso, o tipo de fontes, procedimentos e posturas metodológicas
utilizadas; e, por fim, a escrita da história, ou seja, como ele construiu, em
cada uma de suas obras, descrições e análises dos acontecimentos históricos e
de seus possíveis sentidos.
O
estudo da posicionalidade assumida pelos historiadores diante do passado ajuda
a compreender como esses profissionais, balizados pelos debates de seu tempo, pensam
o passado. Segundo Hobsbawm, esse passado coloca
como “problema para os historiadores” a necessidade de analisar o “sentido do
passado” em cada época, lugar e sociedade[4].
Partindo dessa reflexão pode-se perguntar: qual seria para Ibarê Dantas o
sentido do passado¿ E embora ele não tenha escrito nenhum livro ou artigo a
esse respeito, o referido historiador, em um de seus artigos, registra a
seguinte reflexão baseada nos ensinamentos de Henri Irineu Marrou: “o
passado apresenta-se a ele [o historiador] como um vago fantasma, sem forma nem
consistência; para o apreender é preciso encerrá-lo estreitamente numa rede de
perguntas sem escapatória, obrigá-lo a confessar-se”[5]. Este
posicionamento revela a necessidade do autor de estudar os fantasmas/acontecimentos
ainda não descortinados pela história.
Além
da escolha por temas não estudados ou pouco aprofundados, grande parte dos
temas trabalhados por Dantas pertencem a um passado-próximo e, por que não
dizer, presentes em sua via pessoal, profissional, acadêmica e de cidadão. Assim, não por um acaso, ele antecipa
o que hoje é denominado pelos historiadores de “História do Tempo Presente”.
A
essa postura inovadora, quanto à escolha de temas próximos ao seu tempo,
somou-se o uso das fontes dentro de uma compreensão mais alargada, confirmando
a influência recebida da “Escola dos Annales”. A menção a essa corrente
historiográfica francesa, sobretudo dos membros de sua primeira e segunda geração,
ao lado das contribuições teóricas de Max Weber e de Antônio Gramsci,
constituem a base de seu pensamento, como se pode constatar tanto no exame de suas
obras como nas conferências que ele tem proferido[6].
Por outro lado, outra característica de sua obra é a construção de grandes
sínteses históricas, fugindo da fragmentação e de certos modismos acadêmicos.
É dentro dessa perspectiva que ele
busca ampliar o uso das fontes, assim como, procura alargar o diálogo com as
ciências sociais e a historiografia para clarear a compreensão dos objetos de
estudo que pesquisou, evitando encaixá-los em postulados previamente definidos[7]. Para Dantas, portanto, a busca de procedimentos metodológicos e conceituais para ampliar o diálogo com as fontes e com a bibliografia disponível evitou tanto as armadilhas do empirismo quanto o (des)encaixe proposto pelo estruturalismo e seus congêneres. Estes, segundo Dantas, foram alguns dos desafios presentes nas suas pesquisas, ou seja, manter-se fiel a um rigor metodológico que articulasse, de modo constante, o exame das fontes e o debate teórico, procedimento que, por vezes, lhe valeu críticas quanto a certo formalismo de sua escrita.
Em sua produção, nota-se também o esforço em articular o estudo do local e do nacional, de modo quase sempre atualizado com a bibliografia disponível, inclusive mencionando trabalhos concluídos no âmbito da graduação e dos programas de pós-graduação em história, educação e ciências sociais.
Já a decifração dos significados de sua escrita, quer em termos estéticos quer em termos teóricos e/ou historiográficos, pressupõe a construção de um conhecimento aprofundado tanto de sua biografia quanto de sua produção acadêmica. Somente a partir desse conhecimento, a respeito da vida e da obra de Ibarê Dantas, penso ser possível compreender como um cidadão que passou pelas reminiscências de uma sociedade agrária – premida entre o coronelismo, o cangaço e as interventorias – viveu o período de debates nacionalistas e reformistas, da ditadura civil-militar e da redemocratização da sociedade brasileira, mantendo-se fiel aos princípios republicanos e democráticos. Em torno desses princípios, a obra de Dantas desvela aspectos do processo de dominação e hegemonia política e econômica que perpassaram a sociedade brasileira e, em particular, os seus desdobramentos em Sergipe.
Essa postura não o impediu de tecer críticas tanto ao triunfalismo dos movimentos nacionalistas e populares, no tocante aos acontecimentos de março/abril de 1964, como às posturas colaboracionistas de setores da sociedade civil que apoiaram a ditadura civil-militar, assim como de criticar os excessos da sociedade civil durante o processo de redemocratização do Brasil.
Portanto, para além das deferências e das homenagens, a (des)construção de avaliações críticas acerca das contribuições desse pesquisador faz-se necessária para que se possa ampliar o debate histórico e historiográfico em Sergipe. Um debate necessário tanto aos historiadores como à sociedade; afinal, a compreensão dos sentidos do passado ajuda a (re)pensar o presente e os seus desafios.
Fonte: CRUZ, José Vieira da. "Ibarê Dantas: um historiador de ofício e os sentidos do passado". In: Jornal Cidade, Aracaju, 19/06/2012, p. B-6. Disponível em: http://www2.jornaldacidade.net/artigos_ver.php?id=30734
Em sua produção, nota-se também o esforço em articular o estudo do local e do nacional, de modo quase sempre atualizado com a bibliografia disponível, inclusive mencionando trabalhos concluídos no âmbito da graduação e dos programas de pós-graduação em história, educação e ciências sociais.
Já a decifração dos significados de sua escrita, quer em termos estéticos quer em termos teóricos e/ou historiográficos, pressupõe a construção de um conhecimento aprofundado tanto de sua biografia quanto de sua produção acadêmica. Somente a partir desse conhecimento, a respeito da vida e da obra de Ibarê Dantas, penso ser possível compreender como um cidadão que passou pelas reminiscências de uma sociedade agrária – premida entre o coronelismo, o cangaço e as interventorias – viveu o período de debates nacionalistas e reformistas, da ditadura civil-militar e da redemocratização da sociedade brasileira, mantendo-se fiel aos princípios republicanos e democráticos. Em torno desses princípios, a obra de Dantas desvela aspectos do processo de dominação e hegemonia política e econômica que perpassaram a sociedade brasileira e, em particular, os seus desdobramentos em Sergipe.
Essa postura não o impediu de tecer críticas tanto ao triunfalismo dos movimentos nacionalistas e populares, no tocante aos acontecimentos de março/abril de 1964, como às posturas colaboracionistas de setores da sociedade civil que apoiaram a ditadura civil-militar, assim como de criticar os excessos da sociedade civil durante o processo de redemocratização do Brasil.
Portanto, para além das deferências e das homenagens, a (des)construção de avaliações críticas acerca das contribuições desse pesquisador faz-se necessária para que se possa ampliar o debate histórico e historiográfico em Sergipe. Um debate necessário tanto aos historiadores como à sociedade; afinal, a compreensão dos sentidos do passado ajuda a (re)pensar o presente e os seus desafios.
Fonte: CRUZ, José Vieira da. "Ibarê Dantas: um historiador de ofício e os sentidos do passado". In: Jornal Cidade, Aracaju, 19/06/2012, p. B-6. Disponível em: http://www2.jornaldacidade.net/artigos_ver.php?id=30734
[1] Doutor em História, prof. da SEED, da SEMED e da UNIT.
[2] HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Tradução Cid Knipel
Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.22.
[3] RÜSEN,
Jörn. Razão histórica: os fundamentos da ciência histórica. Tradução
Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UNB, 2001.
[4] HOBSBAWM, Eric. Op. cit..
[5] MARROU,
Henri Irineu. Do Conhecimento Histórico.
Lisboa, Editorial Aster, s/d, p. 53.
[6] Em
particular, refiro-me a conferência recém-proferida por José Ibarê Costa
Dantas, em 31 de maio de 2012, por ocasião do XIV Encontro Sergipano de
História.
[7] BLOCH,
Marc Leopoldo Benjamin. Apologia a
história, ou, o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.
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