segunda-feira, 18 de junho de 2012

Ibarê Dantas: um historiador de ofício e os sentidos do passado

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(Imagem: Ibarê Dantas, IGHSE)



José Vieira da Cruz[1]

A posição da sociedade diante do passado ajuda a compreender como ele é interpretado e apropriado em cada época e lugar.   Os historiadores, seja por dever de ofício, seja pela própria especificidade do seu campo de conhecimento, ao buscarem interpretar o passado percebem-no como “um componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana”[2]. Desta forma, os historiadores de ofício, ou seja, aqueles com formação acadêmica e exercício profissional voltados para essa área de conhecimento, além de descreverem os acontecimentos do passado, procuram analisar os seus sentidos.


Dentro dessa perspectiva, a de um historiador de oficio preocupado em compreender os sentidos do passado, é que podemos localizar a obra de Ibarê Dantas. Sergipano de Riachão do Dantas, licenciado em História pela UFS, mestre em Ciência Política pela UNICAMP,  autor de diversas livros e artigos. Não sem razão, a organização do “XIV Encontro Sergipano de História” escolheu a sua produção acadêmica como tema de discussão.
Esse encontro, intitulado “Ibarê Dantas: História, memória e historiografia”, ocorrido entre os dias 28 e 31 de maio de 2012, e a homenagem que ele efetiva, coaduna algumas qualidades inerentes ao ofício do historiador, no caso, o ato de lembrar e, por conseguinte, o de reconhecer. Partindo dessa premissa, tanto profissionais da área como o referido pesquisador proferiram ponderações acerca de suas contribuições, ou seja, da vida e da obra de Dantas.
A temática desse recente encontro e os debates dele provenientes, não ficaram circunscritos apenas a sua realização, prova disso pode ser percebida ao folhearmos as páginas dominicais do “Jornal da Cidade”, no espaço destinado a opiniões, cujos artigos centrados nos resultados do referido evento acadêmico vêm sendo publicados. O primeiro, de autoria de Fernando Sá, publicada 04/06/2012, versou sobre as contribuições de Dantas para historiografia sergipana. O segundo, de Lindvaldo Sousa, publicada 10/06/2012, tratou do frequente uso das obras de Dantas como referência bibliográfica pelos estudantes de História em monografias de conclusão de curso. Em ambos os artigos, além das devidas deferências, é perceptível a necessidade da fomentação de uma avaliação crítica do trabalho elaborado por esse historiador. Tal avaliação faz-se necessária seja em razão da evocação de temas controversos presentes nessa produção acadêmica, como o debate sobre a natureza conceitual da inflexão política ocorrida em 1964, se golpe ou contrarrevolução; seja para analisar como as contribuições desse historiador foram e são apropriadas pelos estudantes de história e pelos demais pesquisadores que a consultam.
Estimulado por essas discussões, resolvi externar, ainda que de modo breve, aquilo que denomino de plano de estudo sobre as contribuições de Dantas como um historiador de ofício, e que foi objeto de minha explanação em uma das mesas do mencionado encontro. Frente a essa questão, falar das contribuições de um historiador de ofício, nascido e formado em Sergipe, em um evento acadêmico, em regra, enfrenta o problema de situar-me no lugar comum das narrativas dos dados biográficos, das experiências vividas junto ao profissional homenageado e das deferências quanto à importância de sua produção bibliográfica.  Por um lado, fugir a esse roteiro é uma tarefa difícil, por outro, a elaboração de um estudo sobre os significados da obra acadêmica de Dantas para o campo da história exigi tempo e, sobretudo, uma discussão sobre a hermenêutica em que ela foi pensada e produzida, como sugeriu Jörn Rüsen, teórico da história, ao estudar as diferentes dimensões que caracterizam o campo de atuação dos historiadores[3].
Dentro desta perspectiva, da teoria da história de Rüsen, ao menos a título de uma proposta de estudo a ser trabalhada, uma análise da obra de Ibarê Dantas, em particular, no campo da história em Sergipe, pode ser pensada a partir de três dimensões constitutivas da prática profissional dos historiadores: a posicionalidade, ou seja, as posições acadêmicas e políticas assumidas pelo autor; a pesquisa de fontes, no caso, o tipo de fontes, procedimentos e posturas metodológicas utilizadas; e, por fim, a escrita da história, ou seja, como ele construiu, em cada uma de suas obras, descrições e análises dos acontecimentos históricos e de seus possíveis sentidos.
O estudo da posicionalidade assumida pelos historiadores diante do passado ajuda a compreender como esses profissionais, balizados pelos debates de seu tempo, pensam o passado.  Segundo Hobsbawm, esse passado coloca como “problema para os historiadores” a necessidade de analisar o “sentido do passado” em cada época, lugar e sociedade[4]. Partindo dessa reflexão pode-se perguntar: qual seria para Ibarê Dantas o sentido do passado¿ E embora ele não tenha escrito nenhum livro ou artigo a esse respeito, o referido historiador, em um de seus artigos, registra a seguinte reflexão baseada nos ensinamentos de Henri Irineu Marrou: “o passado apresenta-se a ele [o historiador] como um vago fantasma, sem forma nem consistência; para o apreender é preciso encerrá-lo estreitamente numa rede de perguntas sem escapatória, obrigá-lo a confessar-se”[5]. Este posicionamento revela a necessidade do autor de estudar os fantasmas/acontecimentos ainda não descortinados pela história.
Além da escolha por temas não estudados ou pouco aprofundados, grande parte dos temas trabalhados por Dantas pertencem a um passado-próximo e, por que não dizer, presentes em sua via pessoal, profissional, acadêmica  e de cidadão. Assim, não por um acaso, ele antecipa o que hoje é denominado pelos historiadores de “História do Tempo Presente”.
A essa postura inovadora, quanto à escolha de temas próximos ao seu tempo, somou-se o uso das fontes dentro de uma compreensão mais alargada, confirmando a influência recebida da “Escola dos Annales”. A menção a essa corrente historiográfica francesa, sobretudo dos membros de sua primeira e segunda geração, ao lado das contribuições teóricas de Max Weber e de Antônio Gramsci, constituem a base de seu pensamento, como se pode constatar tanto no exame de suas obras como nas conferências que ele tem proferido[6]. Por outro lado, outra característica de sua obra é a construção de grandes sínteses históricas, fugindo da fragmentação e de certos modismos acadêmicos.
É dentro dessa perspectiva que ele busca ampliar o uso das fontes, assim como, procura alargar o diálogo com as ciências sociais e a historiografia para clarear a compreensão dos objetos de estudo que pesquisou, evitando encaixá-los em postulados previamente definidos[7].  Para Dantas, portanto, a busca de procedimentos metodológicos e conceituais para ampliar o diálogo com as fontes e com a bibliografia disponível evitou tanto as armadilhas do empirismo quanto o (des)encaixe proposto pelo estruturalismo e seus congêneres. Estes, segundo Dantas, foram alguns dos desafios presentes nas suas pesquisas, ou seja, manter-se fiel a um rigor metodológico que articulasse, de modo constante, o exame das fontes e o debate teórico, procedimento que, por vezes, lhe valeu críticas quanto a certo formalismo de sua escrita.

Em sua produção, nota-se também o esforço em articular o estudo do local e do nacional, de modo quase sempre atualizado com a bibliografia disponível, inclusive mencionando trabalhos concluídos no âmbito da graduação e dos programas de pós-graduação em história, educação e ciências sociais.

Já a decifração dos significados de sua escrita, quer em termos estéticos quer em termos teóricos e/ou historiográficos, pressupõe a construção de um conhecimento aprofundado tanto de sua biografia quanto de sua produção acadêmica. Somente a partir desse conhecimento, a respeito da vida e da obra de Ibarê Dantas, penso ser possível compreender como um cidadão que passou pelas reminiscências de uma sociedade agrária – premida entre o coronelismo, o cangaço e as interventorias – viveu o período de debates nacionalistas e reformistas, da ditadura civil-militar e da redemocratização da sociedade brasileira, mantendo-se fiel aos princípios republicanos e democráticos. Em torno desses princípios, a obra de Dantas desvela aspectos do processo de dominação e hegemonia política e econômica que perpassaram a sociedade brasileira e, em particular, os seus desdobramentos em Sergipe.

Essa postura não o impediu de tecer críticas tanto ao triunfalismo dos movimentos nacionalistas e populares, no tocante aos acontecimentos de março/abril de 1964, como às posturas colaboracionistas de setores da sociedade civil que apoiaram a ditadura civil-militar, assim como de criticar os excessos da sociedade civil durante o processo de redemocratização do Brasil.

Portanto, para além das deferências e das homenagens, a (des)construção de avaliações críticas acerca das contribuições desse pesquisador faz-se necessária para que se possa ampliar o debate histórico e historiográfico em Sergipe. Um debate necessário tanto aos historiadores como à sociedade; afinal, a compreensão dos sentidos do passado ajuda a (re)pensar o presente e os seus desafios.

Fonte: CRUZ, José Vieira da. "Ibarê Dantas: um historiador de ofício e os sentidos do passado". In: Jornal Cidade, Aracaju, 19/06/2012, p. B-6.  Disponível em: http://www2.jornaldacidade.net/artigos_ver.php?id=30734


[1] Doutor em História, prof. da SEED, da SEMED e da UNIT.
[2] HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.22.
[3] RÜSEN, Jörn. Razão histórica: os fundamentos da ciência histórica. Tradução Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UNB, 2001.
[4] HOBSBAWM, Eric. Op. cit..
[5] MARROU, Henri Irineu. Do Conhecimento Histórico. Lisboa, Editorial Aster, s/d, p. 53.
[6] Em particular, refiro-me a conferência recém-proferida por José Ibarê Costa Dantas, em 31 de maio de 2012, por ocasião do XIV Encontro Sergipano de História.
[7] BLOCH, Marc Leopoldo Benjamin. Apologia a história, ou, o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.

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