José Vieira da Cruz[1]
As artes, nas suas mais variadas formas, revelam a leitura que o artista
tem do universo cultural que o cerca. O teatro, como uma dessas manifestações,
não poderia ser diferente. Partinho desse olhar, o objetivo deste artigo é
analisar algumas experiências desenvolvidas pelo teatro da cultura artística de
Sergipe. O grupo cênico em questão reuniu artistas amadores e profissionais
que, ao escolherem e montarem algumas peças propiciaram instantes de
entretenimento ao público que os prestigiava como também revelaram diálogos,
intenções e um pouco da identidade cultural dos seus integrantes[2].
Este texto toma como referência a documentação da Sociedade de Cultura Artística
de Sergipe (SCAS), existentes no arquivo público da cidade de Aracaju[3].
As fontes analisadas possibilitaram a construção de uma discussão sobre a
atuação da SCAS; instituição mantenedora do teatro da cultura artística de Sergipe.
E no segundo momento, analisa algumas das peças teatrais encenadas por esse
grupo de artes cênicas.
No Brasil, a segunda metade do século XX foi fértil na organização de
“sociedades culturais” com o intuito de apoiar apresentações artísticas ligadas
à música clássica e ao teatro. Essas instituições, impulsionadas pela
contribuição de seus sócios, patrocinadores e/ ou pela obtenção de alguns
investimentos públicos, viabilizaram uma série de apresentações de artistas e
companhias culturais nacionais, e mesmo internacionais como o Realk Ballet da
dinamarca, Ballet Bolshoi, Ballet del teatro Colon de Buenos Aires, do Bollet
da Ópera de Paris, do violinista Ruggiero Reci, da Ópera Rigolleto, entre
inúmeros outros[4].
A forma como essas sociedades apoiavam os eventos artísticos, as tornavam
importantes agências culturais. Essa importância se revela na articulação com
outras instituições culturais objetivando a realização de eventos. Soma-se a
isso o público regular que elas formaram, seja alimentando seu imaginário
cultural, seja despertando talentos artísticos. Em Sergipe, a fundação em Maio
de 1951 da Sociedade de Cultura Artística de Sergipe, por um grupo de profissionais
de várias áreas para apoiar eventos realizados pela SCAS, durante as suas três
primeiras décadas de existência, tornaram-se acontecimentos sociais
prestigiados por elegantes platéias constituídas por pessoas de diferentes
idades.
As platéias da SCAS eram formadas por parcelas distintas da população
aracajuana. Em especial, era possível perceber nestas platéias o reflexo do
ambiente cultural que então se desencadeava na cidade a partir da criação, nos
anos 50 e 60, das seis primeiras faculdades isoladas de Sergipe que logo iriam
construir, em 1968, a
Universidade Federal de Sergipe. A SCAS ainda possibilitava a entrada franca
para estudantes secundaristas, e meia-entrada para os universitários, o que
contribuiu para formar o gosto pela arte entre o público jovem.
Assim, a Sociedade de Cultura Artística de Sergipe, no campo das artes, e
as instituições de ensino superior, no campo do conhecimento, fomentaram um
ambiente cultural propício ao florescimento de idéias e a discussão das artes em Aracaju. Este
ambiente, envolto com o imaginário cinematográfico da época e dos movimentos
culturais juvenis de contestação[5]
potencializou a revelação de talentos e o desenvolvimento de experiências
artísticas diversas.
Inserido neste contexto, as artes cênicas ocupam um lugar de destaque,
sobretudo com a participação de jovens talentos como João costa, Tereza Prado,
Agláe Fontes, Clodoaldo Alencar, Francisco Carlos Varela, João Augusto Gama,
entre outros. Surge o TGB simplificação do Teatro Gato de Botas; o Teatro de Estudantes
do Colégio Estadual de Sergipe (TECES); e o Teatro da Cultura Artística de Sergipe
(TECA).
O teatro da cultura artística de Sergipe, o TECA, foi criado por volta de
1959, quando a segunda diretoria da SCAS resolveu diversificar suas áreas de
atuação, criando o departamento de teatro. Assim nascia o Teatro da Cultura Artística,
sua criação indica a mudança de posição da SCAS que passa também a fomentar a
produção de espetáculos artísticos.
Este é um momento muito rico para o teatro em Sergipe, quando são encenadas
uma série peças com artistas locais. Havia inclusive o esforço no sentido da
profissionalização, contratando diretores de outros estados[6]. Neste panorama, a atuação do TECA possibilitou
aos seus integrantes e ao público que o prestigiava o contato com leituras
teatrais de autores nacionais e internacionais, como também a montagem de peças
de autores sergipanos.
Entre “os roteiros de peças, destacam-se “Les Mouches”, de Jean Paul
Satre, “a Casa de Bernada Alba”, de Garcia Lorca, “ A Dama das Camélias”, de
Alexandre Dumas, “Dias Felizes”, de Glaude André Puget, entre outros. Entre os
roteiros nacionais se destaca “Gimba, Presidente dos Valentes”, de Gianfrancesco
Guarnieri, “O Boi e Burro no caminho de Belém”, de Maria Clara Machado, entre
outros. Dentre os roteiros escritos sem Sergipe destacam-se os textos “A Dança
do Ouro”, e “Municipalista”, ambos de autoria de João Costa.
A peça “A Dança do ouro”, musicada por de Raimundo Ariquitiba Lobão, tem
como tema a historia de Chico - rei. Na peça, a crítica social é uma constante,
a exemplo da fala da atriz 8 – cena final:
Negros ou
braços escravos!
De livres não
temos nada!
Uni-vos,
dançai ligeiro.
Dança da
libertação!
Mas escondei
nesses rostos
A fúria e
indignação
De vos
haverem negado
A terra pra o
braço e mão[7]
Já a peça “Municipalista” trata as propagandas eleitorais como verdadeiro
assédio ao eleitorado, é uma violência contra a moral e a ética. Ainda que de
forma bem humorada, nesta peça fica clara a situação de caos político e falta
de “conscientização”, tanto por parte do eleitorado quando por parte dos candidatos
que intencionam apenas chegar ao poder. As falas são coroadas pelo depoimento
de diversos eleitores que não sabem para que serve o título de eleitor e muito
menos o seu voto, enquanto que para os “coronéis” candidatos é creditado poder
e prestígio:
Eu me chamo
Labirinto,
Sou figura
importante,
Sou figura
que faltava
Ao lado do
coronel
Que é dono
disso tudinho.
Ele paga
direitinho
Ao bandido
corajoso.
Mato gente
por contrato,
Mas a culpa é
do Pacheco,
Que é
distinto e afamado
Conhecido
coronel
Pra Prefeito
candidato[8]
Dentre as peças apresentadas Dias
felizes e a Inconseqüência da Juventude, uma comédia romântica em três atos
escrita por Claude André Puget, tradução de Maria Jacinta e direção de Mario
Sergio Galvão Bueno, chama atenção por revelar um pouco da identidade cultural
dos atores sociais envolvidos com o TECA. A peça se passa nos arredores de
Paris, onde alguns jovens vivem um jogo amoroso. Através de diálogos curtos, a
peça reforça a imagem de uma juventude responsável e que valoriza o élan
solidário entre os amigos que partilharam as experiências vividas por
indivíduos de uma mesma geração[9].
As idéias trabalhadas na peça, entretanto, estabelecem um jogo na busca da
(des)construção de imagens. Por um lado, a idéia iluminista de uma juventude
letrada, responsável, e capaz de tomar decisões e reforçada, e a isso e acrescido
solidariedade aos amigos e o respeito a família. E de outro, busca-se não
valorizar a superficialidade e fugacidade da imagem de jovens problemáticos
destacados pela indústria do cinema americano. O folheto de apresentação da
peça revela esse jogo de intenções ao destacar
o enredo a ser encerado:
‘DIAS FELIZES’
vem mostrar que a juventude quer no Brasil, como em qualquer outra parte do
mundo, inclusive nos Estados Unidos, e alegre, e viva, e sadia. A juventude não
é e não pode ser representada pelo ‘playboy’ ignorante como lhe cabe ser, inculto
ao extremo, chegando mesmo ‘as raias da ‘burrice’,incapaz mesmo de ter outro
caso de ‘transviamento’ entre jovens, mas a grande maioria e sadia, alegre. Se
tem problemas, são inconseqüentes[10].
A peça em questão trabalha a imagem de uma juventude que aposta na
educação esclarecida, que não se coloca como problema. Uma juventude que não
quer ser comparada ‘a imagem da juventude transviada dos anos 50 nos Estados
Unidos, eternizada nas películas de cinema do período em filmes como Rebel Without a Cause[11],
mas que reivindica para si o direito de tomar suas próprias decisões sem
sentimento de culpa, sem obrigações. Por isso é que a fala das personagens são
leves, com pequenos problemas que se resumem ao romance, pequenas rusgas sem
maiores complexidades. Em consonância com a idéia de cultura a peça se passa em
Paris, cidade exemplo de “polimento” cultural, bem ao gosto dos jovens cultos e
felizes que a peça deseja retratar, longe da “juventude problemática”
norte-americana.
A analise da peça revela o que Norbert Elias[12]
descreve como estratégia de valorização de um grupo social. Em oposição à
generalização de estigmas desfavoráveis a outros grupos sociais. No caso em
questão a própria cultura é alvo de um jogo de “polimento”, o caso francês, e
“superficialidade”, o caso americano. Esse jogo revela um debate, por vezes silenciado, que adentra as instituições
educacionais no Estado.
Ao descortinar uma primeira abordagem a respeito de algumas das peças
apresentadas pelo Teatro da Cultura Artística de Sergipe, revela-se um pouco
das preferências e da identidade cultural de estudantes, artista e
profissionais liberais que apesar de não se estabelecerem como atores e atrizes
tiveram acesso a um amplo universo de leituras e partilharam experiências
sócio-culturais muito ricas.
Referências
Bibliográficas:
ANGELO, Ivan. 85 anos de História da Sociedade de Cultura Artísticas. São Paulo:
Estúdio Nobel, 1998.
COSTA, João. Dança do Ouro. 1960. Arquivo Público da Cidade de Aracaju/Fundo
SCAS.
_____. Municipalista.1959. Arquivo Público da Cidade de Aracaju/Fundo
SCAS.
CRUZ, José Vieira da . Juventude e Identificação Social:
Experiências Culturais dos Universitários em Aracaju/SE (1960-1964). São
Cristóvão: UFS, 2003. (Dissertação).
ELIAS, Norbert
& Scotson, John L. Os Estabelecidos e
os Outsiders: Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena
comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
GROPPO, Luís Antônio. Juventude: Ensaios sobre Sociologia e
História das uventudes Modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural n Pós-modernidade. Trad.: Tamaz Tadeu da
Silva e Guacira Lores Loouro; 5 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
MENEZES, Magna. As Idéias Cepecistas no Teatro Gato de Botas em Aracaju: 1962 – 1964. São Cristóvão: DHI/UFS, 1998. Monografia.
PASSERINI, Luisa “ A Juventude,
metáfora da mudança social dois debates sobre os jovens: a Itália fascista e os
Estados Unidos da década de 1950”
in: LEVI, Giovanni e SCHMITT, jean-Claude. Historia
dos jovens 2: Da Época Contemporânea.
Ao Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.319-382.
RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à era da TV.
São Paulo: Record, 2000.
SANTOS, Miriam Vieira dos. Um Marco Cultural: Documentos Catalogados da
Sociedade de Cultura Artística de Sergipe (1951 a 1989). São
Cristóvão: UFS, 2002.
[1] Doutor em História. Prof. da
SEED, da SEMED e da UNIT. E-mail: historiadorjvdc@gmail.com
[2]Entende-se por identidade cultural o sentimento de
pertencimento. Mais informações a respeito em: HALL, Stuart. A Identidade Cultural n Pós-modernidade. Trad.:
Tamaz Tadeu da Silva e Guacira Lores Loouro; 5 ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2001.
[3] A respeito da documentação do fundo SCAS é necessário
ressaltar a monografia de SANTOS, Miriam Vieira dos. Um Marco Cultural: Documentos Catalogados da Sociedade de Cultura
Artística de Sergipe (1951 a
1989). São Cristóvão: UFS, 2002.
[4] Maiores informações a respeito ver em ANGELO, Ivan. 85 anos de História da Sociedade de Cultura
Artísticas. São Paulo: Estúdio Nobel, 1998; e SANTOS, Miriam Vieira. Op.
Cit.
[5] A respeito ver em RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da
Revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Record, 2000; e CRUZ, José Vieira
da . Juventude e Identificação Social:
Experiências Culturais do s Universitários em Aracaju/SE (1960-1964). São
Cristóvão: UFS, 2003. (Dissertação).
[6] MENEZES, Magna. As
Idéias Cepecistas no Teatro Gato de Botas em Aracaju: 1962 – 1964. São Cristóvão:
DHI/UFS, 1998. Monografia.
[7] Trecho da peça
“A Dança do Ouro”. Fonte: APA/Fundo SCAS/Pacotilha.
[8] Trecho da peça “Municipalista” encenada em São Paulo em 1959.
Fonte: APA/Fundo SCAS
[9] O conceito a
cerca da idéia de “geração” adotada aqui se relaciona às experiências culturais
e sociais partilhadas por indivíduos que possuem uma faixa de idade
relativamente próxima. A respeito ver em GROPPO, Luís Antônio. Juventude: Ensaios sobre Sociologia e
História das Juventudes Modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000; E CRUZ, José
Vieira da . Op. cit.
[10]Trecho da peça “Dias Felizes”. Fonte: APA/SCAS.
C/Pacotilha 09.
[11] PASSERINI, Luisa “ A Juventude, metáfora da mudança
social dois debates sobre os jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da
década de 1950”
in: LEVI, Giovanni e SCHMITT, jean-Claude. Historia
dos jovens 2: Da Época Contemporânea.
Ao Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.319-382.
[12] ELIAS, Norbert & Scotson, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: Sociologia
das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro:
Zahar, 2000.
Fonte: CRUZ, José Vieira da. “Artes cênicas e literatura: O Teatro da Cultura Artística de Sergipe”. In: Jornal da Cidade, 29/01/2004.
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