Em entrevista concedida ao "Jornal do Dia", publicado no dia 30 de junho de 2013, o historiador e cientista político Ibarê Dantas, aqui intitulada "As manifestações de junho - Por Ibarê Dantas", tece uma avaliação inicial das implicações políticas das manifestações ocorridas no mês de junho, expressa seu olhar sobre a necessidade de uma reforma política, dos significados acerca da noção ampliada de democracia/cidadania, dos limites da contenção pela violência dessas manifestações, da temeridade da convocação de uma assembleia constituinte e questiona a eficácia que a realização de um
plebiscito pode produzir.
Vale a leitura:
Entrevista com o Professor Ibarê Dantas para o
Jornal do Dia:
Jornal do Dia - O aumento nas tarifas de ônibus foi o mote para essas manifestações que
se repetem pelo País, inclusive em Aracaju. O senhor já fez uma reflexão sobre
isso?
Ibarê Dantas – Penso que a tarifa de ônibus foi um problema que despertou outras
demandas decorrentes de transformações que vêm se processando no mundo e
particularmente no país. Entre essas mudanças, certamente a de maior
abrangência tem sido a revolução nos meios de comunicação. Enquanto isso, no
Brasil, a classe média se ampliou e o atendimento dos serviços públicos de
saúde, de segurança e do ensino fundamental pioraram sensivelmente dentro de um
Estado que não se aparelhou para atender às necessidades básicas da vida das
pessoas nas grandes cidades.
Os
partidos, por sua vez, que já vinham perdendo legitimidade, estimulados por uma
legislação permissiva, passaram a adotar práticas cada vez mais acintosas. Adotando
um pluripartidarismo permissivo pelo voto proporcional aberto, caso raro no
mundo, distanciaram-se do interesse público. A situação se agravou a partir de
2003, quando houve um grande esforço, nem sempre lícito, por parte do Executivo
Federal, no sentido de montar uma ampla coalizão política para controle hegemônico
da sociedade. Resultado: o governismo imperou protegido pela grande maioria, inibiu
a oposição, cooptou centrais sindicais e numerosos segmentos da sociedade.
Diante dessa situação confortável, pôde operar várias intervenções na economia
prejudiciais às finanças das diversas unidades federativas. Isso deve ter
contribuído para que os Estados e as prefeituras encontrassem mais dificuldades
para atender às demandas sociais, mesmo porque, urge reconhecer, eles nem
sempre consideraram os serviços públicos como elementos prioritários.
JD – Os
manifestantes reclamam das deficiências do serviço público, mas não têm
reivindicações específicas nem líderes definidos. Como os governos devem agir
nesse caso?
Ibarê Dantas - Esses são dois grandes problemas dos governos. Apesar de o movimento
ser plural e enriquecedor para a democracia, a enorme diversidade das demandas
e a falta de liderança representativa criam uma situação difícil e
constrangedora para os governos. Uma alternativa seria sinalizar para atendimento
de alguns pontos possíveis. A questão é que a maioria das reivindicações não
pode ser atendida a curto prazo. Além disso, existe uma implicação incômoda.
Como a mentalidade do século XXI de cidadania ampliada proíbe que se
criminalizem os movimentos sociais, por mais que se diga que o movimento é
pacífico, há sempre um espaço para uma minoria de ativista depredar e saquear o
patrimônio público e privado, e jogar pedras na polícia. Como as lideranças reivindicam
e o ministério público recomenda que não se usem armas, nem as não letais,
resta à polícia proteger-se com seus escudos e os empresários se conformarem
com seus prejuízos. Falta saber até quando eles estão dispostos a suportar essa
situação. Além disso, ainda existe a interrupção de ruas e estradas, impedindo
o direito de ir e vir.
JD – A
nível nacional a presidente Dilma vem tentando entender o movimento e adotou
alguns gestos como a proposta de convocação de um plebiscito sobre reforma
política. Esse é o grande problema nacional?
Ibarê Dantas - Considero a reforma política uma questão importante, mas não se
justifica através de plebiscito. Realmente alguns cientistas políticos há muito
criticam esse pluralismo permissivo, sobretudo em sua coexistência com o voto
proporcional aberto, inclusive por facultar os partidos de aluguel, o aumento
da mercantilização na política, o aviltamento da vida partidária e a criação de
problemas de governança. Entretanto, o próprio Congresso estabeleceu a cláusula
de barreira e o STF manifestou-se contra em decisão lamentável.
Apesar
disso, se houvesse grande empenho dos governos que gozam de ampla maioria,
poderia melhorar muitos pontos tanto no sistema partidário como no eleitoral,
mesmo considerando que a reforma política é um tema complexo de grande
abrangência, envolvendo financiamento de campanha, fidelidade partidária, os
tipos de voto – proporcional aberto ou
fechado, distrital, misto –, lista, forma de governo, reeleição, coligações,
cláusulas de barreiras e assim sucessivamente, tudo dando margem a muita controvérsia.
Avalio
que um tema desse não é apropriado para um plebiscito, muito menos apressadamente
como está proposto. Dá a impressão que a presidente teve essa ideia como uma
forma de desviar das reivindicações sociais e levar a sociedade a entreter-se imersa
nessa polêmica. Quanto à ideia anunciada de constituinte exclusiva para fazer a
reforma política, me deixou perplexo.
JD - Como deveria ser feita essa reforma? Os
partidos políticos são mesmo fundamentais?
Ibarê Dantas- Há várias formas de viabilizar a reforma política. Somente no
Congresso existem várias propostas e algumas delas chegaram perto de serem
aprovadas. Faltou empenho do governo e/ou de alguém com autoridade e vontade
para construir o consenso. Agora, com a voz das ruas, o tema se torna mais
fascinante e oportuno pela possibilidade de reforma, tanto no sistema
partidário quanto no sistema eleitoral, com a incorporação de novas sugestões
para ampliar a interlocução com o eleitorado e apresentar novas exigências aos
candidatos. Com a popularização das redes sociais, na esfera municipal poderia
se tentar novas formas de consulta popular, como alguns estudiosos do assunto
têm sugerido. O importante seria ativar mais a relação entre o eleitorado e os
candidatos e proporcionar mais responsabilidade aos eleitos do que têm hoje, pois,
no sistema atual, pode-se dizer que o parlamentar é de fato irresponsável, uma
vez que não responde pelos efeitos de suas proposições.
De qualquer forma, considero os partidos
fundamentais. Descartá-los seria jogar fora a criança com a água do banho. Quanto
às reações das massas em relação aos partidos, de alguma forma são
compreensíveis pela negligência como eles vinham atuando e pela imagem que
deles se criou. Cabe agora à sociedade acompanhar melhor o processo político,
melhorar os quadros de representação e fazer-se mais vigilante no
acompanhamento de seus candidatos. O importante é renovar os partidos e
torná-los mais legítimos. Pois os considero indispensáveis. Até hoje, outras
formas experimentadas, entre os quais os conselhos populares, têm sido mais
problemáticos no seu funcionamento e nefasto nos seus resultados.
JD - O Congresso começou a dar algumas respostas às
ruas, como no caso da PEC 37 e no endurecimento da legislação para casos de
corrupção. Esses pontos ajudam a baixar a tensão?
Ibarê Dantas- Podem ajudar. Não sei até quando. Pois estou muito curioso em saber
como esse movimento irá terminar e quais seus efeitos no arcabouço
institucional de nossa República e na vida das pessoas.
Fonte: Jornal do Dia, 30 de junho de 2013.
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