sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A peça "Dias Felizes" o Teatro da Cultura Artística de Sergipe


 José Vieira da Cruz



No Brasil, a segunda metade do século XX foi fértil na organização de “sociedades culturais” com o intuito de apoiar apresentações artísticas ligadas à música clássica e ao teatro. Essas instituições, impulsionadas pela contribuição de seus sócios, patrocinadores e/ ou pela obtenção de alguns investimentos públicos, viabilizaram uma série de apresentações de artistas e companhias culturais nacionais, e mesmo internacionais como o Realk Ballet da dinamarca, Ballet Bolshoi, Ballet del teatro Colon de Buenos Aires, do Bollet da Ópera de Paris, do violinista Ruggiero Reci, da Ópera Rigolleto, entre inúmeros outros[5].



A forma como essas sociedades apoiavam os eventos artísticos, as tornavam importantes agências culturais. Em Sergipe, a fundação em Maio de 1951 da Sociedade de Cultura Artística de Sergipe (SCAS), por um grupo de profissionais de várias áreas para apoiar eventos e produções artísticas  tornaram, durante  aproximadamente três décadas, acontecimentos sociais prestigiados parcelas distintas da sociedade. A SCAS ainda possibilitava a entrada franca para estudantes secundaristas, e meia-entrada para os universitários, o que contribuiu para formar o gosto pela arte entre o público jovem.

Assim, a Sociedade de Cultura Artística de Sergipe, no campo das artes, e as instituições de ensino superior, no campo do conhecimento, fomentaram um ambiente cultural propício ao florescimento de idéias e a discussão das artes em Aracaju. Este ambiente, envolto com o imaginário cinematográfico da época e dos movimentos culturais juvenis de contestação[6] potencializou a revelação de talentos e o desenvolvimento de experiências artísticas diversas.

Vinculado a SCAS, o teatro da cultura artística de Sergipe (TECA) foi criado por volta de 1959, quando a segunda diretoria da SCAS resolveu diversificar suas áreas de atuação, criando o departamento de teatro. Assim nascia o Teatro da Cultura Artística, sua criação indica a mudança de posição da SCAS que passa também a fomentar a produção de espetáculos artísticos.

Este é um momento muito rico para o teatro em Sergipe, quando são encenadas uma série peças com artistas locais. Havia inclusive o esforço no sentido da profissionalização, contratando diretores de outros estados[7].  Neste panorama, a atuação do TECA possibilitou aos seus integrantes e ao público que o prestigiava o contato com leituras teatrais de autores nacionais e internacionais, como também a montagem de peças de autores sergipanos.

Entre “os roteiros de peças, destacam-se “Les Mouches”, de Jean Paul Satre, “a Casa de Bernada Alba”, de Garcia Lorca, “ A Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas, “Dias Felizes”, de Glaude André Puget, entre outros. Entre os roteiros nacionais se destaca “Gimba, Presidente dos Valentes”, de Gianfrancesco Guarnieri, “O Boi e Burro no caminho de Belém”, de Maria Clara Machado, entre outros. Dentre os roteiros escritos sem Sergipe destacam-se os textos “A Dança do Ouro”, e “Municipalista”, ambos de autoria de João Costa.

Dentre as peças apresentadas Dias felizes e a Inconseqüência da Juventude, uma comédia romântica em três atos escrita por Claude André Puget, tradução de Maria Jacinta e direção de Mario Sergio Galvão Bueno, chama atenção por revelar um pouco da identidade cultural dos atores sociais envolvidos. A peça se passa nos arredores de Paris, onde alguns jovens vivem um jogo amoroso. Através de diálogos curtos, a peça reforça a imagem de uma juventude responsável e que valoriza o élan solidário entre os amigos que partilharam as experiências vividas por indivíduos de uma mesma geração[10].

As idéias trabalhadas na peça, entretanto, estabelecem um jogo na busca da (des)construção de imagens. Por um lado, a idéia iluminista de uma juventude letrada, responsável, e capaz de tomar decisões e reforçada, e a isso e acrescido solidariedade aos amigos e o respeito a família. E de outro, busca-se não valorizar a superficialidade e fugacidade da imagem de jovens problemáticos destacados pela indústria do cinema americano. O folheto de apresentação da peça revela esse jogo de intenções ao destacar  o enredo a ser encerado:

‘DIAS FELIZES’ vem mostrar que a juventude quer no Brasil, como em qualquer outra parte do mundo, inclusive nos Estados Unidos, e alegre, e viva, e sadia. A juventude não é e não pode ser representada pelo ‘playboy’ ignorante como lhe cabe ser, inculto ao extremo, chegando mesmo ‘as raias da ‘burrice’,incapaz mesmo de ter outro caso de ‘transviamento’ entre jovens, mas a grande maioria e sadia, alegre. Se tem problemas, são inconseqüentes[11].



A peça em questão trabalha a imagem de uma juventude que aposta na educação esclarecida, que não se coloca como problema. Uma juventude que não quer ser comparada ‘a imagem da juventude transviada dos anos 50 nos Estados Unidos, eternizada nas películas de cinema do período em filmes como Rebel Without a Cause[12], mas que reivindica para si o direito de tomar suas próprias decisões sem sentimento de culpa, sem obrigações. Por isso é que a fala das personagens são leves, com pequenos problemas que se resumem ao romance, pequenas rusgas sem maiores complexidades. Em consonância com a idéia de cultura a peça se passa em Paris, cidade exemplo de “polimento” cultural, bem ao gosto dos jovens cultos e felizes que a peça deseja retratar, longe da “juventude problemática” norte-americana.

A analise da peça revela o que Norbert Elias[13] descreve como estratégia de valorização de um grupo social. Em oposição à generalização de estigmas desfavoráveis a outros grupos sociais. No caso em questão a própria cultura é alvo de um jogo de “polimento”, o caso francês, e “superficialidade”, o caso americano. Esse jogo revela um debate, por  vezes silenciado, que adentra as instituições educacionais no Estado.

Ao descortinar uma primeira abordagem a respeito de algumas das peças apresentadas pelo Teatro da Cultura Artística de Sergipe, revela-se um pouco das preferências e da identidade cultural de estudantes, artista e profissionais liberais que apesar de não se estabelecerem como atores e atrizes tiveram acesso a um amplo universo de leituras e partilharam experiências sócio-culturais muito ricas.

Referências Bibliográficas:



ANGELO, Ivan. 85 anos de História da Sociedade de Cultura Artísticas. São Paulo: Estúdio Nobel, 1998.

APA/Fundo SCAS/Pacotilha.

COSTA, João. Dança do Ouro. 1960. Arquivo Público da Cidade de Aracaju/Fundo SCAS.

COSTA, João. Municipalista.1959. Arquivo Público da Cidade de Aracaju/Fundo SCAS.

CRUZ, José Vieira da . Juventude e Identificação Social: Experiências Culturais dos Universitários em Aracaju/SE (1960-1964). São Cristóvão: UFS, 2003. (Dissertação).

ELIAS, Norbert & Scotson, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

Fonte: APA/SCAS. C/Pacotilha 09.

GROPPO, Luís Antônio. Juventude: Ensaios sobre Sociologia e História das uventudes Modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural n Pós-modernidade. Trad.: Tamaz Tadeu da Silva e Guacira Lores Loouro; 5 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 

MENEZES, Magna. As Idéias Cepecistas no Teatro Gato de Botas em Aracaju: 1962 – 1964.  São Cristóvão: DHI/UFS, 1998. Monografia.  

PASSERINI, Luisa “ A Juventude, metáfora da mudança social dois debates sobre os jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950” in: LEVI, Giovanni e SCHMITT, jean-Claude. Historia dos jovens 2: Da Época Contemporânea. Ao Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.319-382.

RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Record, 2000.

SANTOS, Miriam Vieira dos. Um Marco Cultural: Documentos Catalogados da Sociedade de Cultura Artística de Sergipe (1951 a 1989). São Cristóvão: UFS, 2002.



[1] Artigo publicado no Jornal da Cidade, 29/01/2004.
[2] Mestre em Sociologia pela NPPCS/UFS. Professor da Rede Municipal de Educação de Aracaju e da Rede Estadual de Educação de Sergipe. E-mail: josevieiradacruz@uol.com.br
[3]Entende-se por identidade cultural o sentimento de pertencimento. Maiores informações a respeito ver em HALL, Stuart. A Identidade Cultural n Pós-modernidade. Trad.: Tamaz Tadeu da Silva e Guacira Lores Loouro; 5 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 
[4] A respeito da documentação do fundo SCAS é necessário ressaltar a monografia de SANTOS, Miriam Vieira dos. Um Marco Cultural: Documentos Catalogados da Sociedade de Cultura Artística de Sergipe (1951 a 1989). São Cristóvão: UFS, 2002.
[5] Maiores informações a respeito ver em ANGELO, Ivan. 85 anos de História da Sociedade de Cultura Artísticas. São Paulo: Estúdio Nobel, 1998; e SANTOS, Miriam Vieira. Op. Cit.
[6] A respeito ver em RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Record, 2000; e CRUZ, José Vieira da . Juventude e Identificação Social: Experiências Culturais do s Universitários em Aracaju/SE (1960-1964). São Cristóvão: UFS, 2003. (Dissertação).
[7] MENEZES, Magna. As Idéias Cepecistas no Teatro Gato de Botas em Aracaju: 1962 – 1964.  São Cristóvão: DHI/UFS, 1998. Monografia.  
[8]  Trecho da peça “A Dança do Ouro”. Fonte: APA/Fundo SCAS/Pacotilha.
[9] Trecho da peça “Municipalista” encenada em São Paulo em 1959. Fonte: APA/Fundo SCAS
[10]  O conceito a cerca da idéia de “geração” adotada aqui se relaciona às experiências culturais e sociais partilhadas por indivíduos que possuem uma faixa de idade relativamente próxima. A respeito ver em GROPPO, Luís Antônio. Juventude: Ensaios sobre Sociologia e História das Juventudes Modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000; E CRUZ, José Vieira da . Op. cit.
[11]Trecho da peça “Dias Felizes”. Fonte: APA/SCAS. C/Pacotilha 09.
[12] PASSERINI, Luisa “ A Juventude, metáfora da mudança social dois debates sobre os jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950” in: LEVI, Giovanni e SCHMITT, jean-Claude. Historia dos jovens 2: Da Época Contemporânea. Ao Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.319-382.
[13] ELIAS, Norbert & Scotson, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

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